A trilogia Binti conta a história de uma jovem himba de 16 anos que é a primeira da família a ingressar na universidade. Contudo, a nave que ela embarcava é atacada por medusas e todos da tripulação são mortos, com exceção dela. Nossa heroína se vê no meio de um conflito que não lhe pertence.
O primeiro livro se desdobra sobre esse enredo, a tentativa de Binti, a protagonista que dá nome a obra, de sobreviver a um ataque assassino. É uma leitura intensa, agoniante, mas que nos envolve de tal forma que é impossível parar sem antes saber se a garota conseguirá convencer as medusas a não matá-la.
A determinação e a coragem de Binti beiram a loucura, mas são inspiradoras. Ela tem ciência do que deixou em casa, sabe como foi difícil chegar até ali. Não deixaria nada ficar no caminho para um dos seus maiores sonhos. É o tipo de história que qualquer menina menina negra da periferia se identifica, todas nós já nos encontramos no lugar de Binti em algum momento de nossas vidas.
A protagonista encontra refúgio na matemática, ela é uma harmonizadora capaz de construir equações para manter o equilíbrio das coisas. É fascinante o modo como a autora escreve esse aspecto dela, os números e cálculos são tão naturais que ela ramifica sem nem perceber. Quebrando com o paradigma de que esse conhecimento é de domínio branco, quando sabemos que a África foi o berço de tudo, principalmente as civilizações de maioria negra.

Não é à toa que terminei a primeira parte em um dia, totalmente ligada à fé de Binti. Presa na sua coragem de enfrentar criaturas desconhecidas, receosa com a possibilidade da morte, entretanto sabendo que ela se sentiria pior se não tentasse até o fim. A escrita simples, mas sedutora de Nnedi Okorafor também auxiliou nesse processo.
A evolução da personagem ao longo do capítulo é surreal. No início, ela é apenas uma adolescente começando a vida adulta, cheia de medo e com saudade de casa. Ao fim, conhecemos uma protagonista mais madura, pronto para a próxima fase que a aguarda.
ATENÇÃO: É possível que a partir daqui tenha algum spoiler, então é bom que você evite essa parte do texto.
Após superar o ataque, Binti vai estudar na Unioomza, uma instituição de muito prestígio na galáxia. A heroína é a única de seu povo lá e na maioria das vezes é a única pessoa preta no local, tendo que lidar com perguntas incômodas sobre o otize que aplica no corpo, os dreads de seus cabelos e ainda a razão de sua pele ser tão escura.
Ela faz o melhor que pode para tentar controlar a raiva que cresce em si, conforme é descrito com ênfase nas páginas. É como se a personagem estivesse em conflito consigo mesma quase o tempo inteiro, com dificuldade de enfrentar as mudanças pelas quais está passando no lugar novo.

Mais um ponto onde gera identificação com o leitor. Pois, quando vamos à universidade, falando por experiência própria, conhecemos outras pessoas, aprendemos coisas novas. Já não somos mais os adolescentes inconformados do Ensino Médio, estamos nos tornando adultos. Não é fácil passar por isso.
Para Binti é mais complicado ainda, afinal ela teve que contrariar os pais e a cultura que tanto estimava para estar ali. Então, quando finalmente retorna para casa não é louvada por ter salvado o planeta e pela conquista, é dita como impura.
O enredo se torna mais travado a partir desse momento, é como se a dor da personagem saltasse para nós. Talvez, isso tenha acontecido de forma mais intensa para mim, porque mais uma vez me via no lugar de Binti. Apesar de ser protestante e de uma cultura diferente da dela, me sinto nesse local em todos os momentos que não concordo e luto contra os discursos de ódio levantados por “líderes evangélicos”.
Enfim, de volta a história. No meio do segundo volume, acontece um ponto de virada de extrema relevância para a nossa heroína. Embarcamos com ela em uma jornada em busca de si mesma, cheia de alucinações e saberes que envolvem civilizações alienígenas extremamente avançadas.

A escrita de Nnedi nos leva de uma forma tão surreal, que quando percebi estava sonhando junto com a protagonista. Totalmente imersa em uma fantasia interplanetária e fascinada com o que era narrado.
Já no terceiro livro, Binti usará as habilidades para dar um fim no conflito entre koush e medusas. Os Koush são civilização de pessoas de pele clara ou branca, não é exatamente bem definido no livro, que tem domínio sobre o planeta e que guerreiam com as medusas há anos. Ninguém sabe exatamente o motivo, mas tem a ver com a exploração dos habitats dessas criaturas.
É com eles que Okorafor vai traçar um discurso relacionado ao neocolonialismo africano. Na minha visão, os koush representam os europeus que dividiram o território do continente como bem quiseram apenas para benefício próprio.

A narrativa é cativante e interessante do começo ao fim. Fiquei nervosa, no entanto, com algumas decisões imprudentes da Binti. Mas lembrei que ela era uma adolescente passando por várias mudanças ao mesmo tempo, que só estava agindo conforme a idade dela. A personagem não tem medo de errar ou se contradizer, o que aproxima a personalidade dela do mundo real e a deixa mais humana.
Binti não tem medo de sentir e é intensa. Ainda encontra espaço para um romance no meio da confusão toda. A autora tem o cuidado extremo de inserir esse acontecimento de modo que faça sentido com o entorno, sem perder a linha narrativa.
O desfecho é surpreendente, me deixou literalmente boquiaberta. Mostra que a jornada de Binti no universo está apenas começando e que seu propósito é maior do que imaginava. Nnedi escreveu uma trilogia tão concisa entre si que cheguei a pensar que estava lendo um livro só.
Vale salientar que a obra segue a linha africanofuturista, que diferente do afrofuturismo, traz as culturas africanas para o centro, não as diaspóricas.
Recomendo a leitura da obra, vai por mim, será incrível.