O longa-metragem é o primeiro com maior número de pessoas pretas à frente e atrás das câmeras
O aniversário de 296 anos de Fortaleza foi especial. A capital cearense recebeu a estreia de “Medida Provisória”, filme dirigido por Lázaro Ramos, no Cineteatro São Luiz. O momento, que contou com a presença do artista, aconteceu na última quarta-feira, 13, às 19h. A plateia estava lotada, apesar do evento acontecer simultaneamente a estreia do blockbuster “Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore”.

Foto: Eduarda Porfírio
“Primeiro que estou com raiva de Dumbledore (personagem do filme “Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore’) e do ‘Dr. Estranho’ (do longa ‘Doutor Estranho no Multiverso da Loucura’, com data de estreia no dia 4 de maio). Se eu ver os dois, pego aquele chapéu de Dumbledore e cuspo em cima”, brincou o ator no debate ocorrido após a exibição de “Medida Provisória”.
“É preciso a gente relembrar isso, hoje, no Brasil, a gente tem menos de quatro mil salas de cinema. Esse é quase o número de salas que somente a cidade de Nova Iorque tem. Isso já cria um problema, que é espaço para os nossos filmes. O segundo problema: a gente não tem uma regulamentação que faça com que as vezes um filme como o do Dumbledore (“Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore”) chegue no cinema e ocupe de três a cinco salas e não tenha nenhuma sala para o ‘Medida Provisória’. Precisa regulamentar isso, porque o filme nacional movimenta a indústria de cinema no Brasil, uma indústria que gera empregos”, o cineasta reiterou.

Além disso, a produção ainda sofreu boicote por parte da Agência Nacional de Cinema (Ancine). O que adiou mais ainda a estreia, prevista anteriormente para novembro de 2021. “Isso é o que acontece quando uma nação não tem pensamento estratégico para a cultura, fica só perseguindo artista. É só perseguição política”, afirmou o ator.
“Talvez não seja tão trágico porque está acontecendo esse movimento lindo que estamos vendo aqui hoje, das pré-estreias estarem ativando a divulgação espontânea das pessoas. O que está ajudando o nosso filme inclusive, a quem sabe ter mais do que noventa salas, que é o que provavelmente vamos ter no país inteiro”, complementou. “Medida Provisória” está em cartaz no Cineteatro São Luiz e nas salas de cinema dos shoppings Parangaba e Via Sul.

Durante a exibição do longa, o QG teve a oportunidade de conversar com Lázaro Ramos sobre os processos de produção, criação e divulgação da produção. Confira:
Quilombo Geek: Primeiro é um prazer estar aqui, sou muito sua fã desde o Foguinho (personagem do Lázaro Ramos na novela “Cobras e Lagartos”, exibida pela TV Globo em 2006) e eu queria saber como surgiu a inquietação pra você fazer esse filme? De onde surgiu esse “ah! eu quero fazer esse filme”?
Lázaro Ramos: Nossa, muito engraçado isso, porque eu não tinha plano de fazer esse filme não. Eu dirigi a peça de teatro “Namíbia, não!”, do Aldri Anunciação, e eu tava muito feliz com isso e eu senti que ali tinha uma linguagem que poderia falar sobre a luta antirracista num formato que ainda não foi experimentado, essa mistura de gêneros comédia, drama, thriller, melodrama, e eu achei interessante.
Mas eu queria ter carreira de ator e eu ofereci pra vários cineastas que não puderam, não quiseram, achavam que era muito difícil adaptar. E eu comecei a trabalhar na direção pensando em passar a função pra outra pessoa. No meio do caminho, eu me vi apaixonado, porque primeiro tinha um desafio grande que era de conseguir fazer uma história que misturava gêneros.
Descobri uma grande possibilidade que era fazer um perfil variado de personagens negros no cinema, coisa que nem sempre tem. Tem um protagonista negra, de classe média, com destaque, com camadas, coisa que muitas vezes não tem no nosso cinema. E aí eu fui percebendo esses elementos e não quis mais sair dessa função. Mas foi a história que me arrebatou e a possibilidade de uma nova linguagem.
QG: Inclusive, queria te perguntar como foi isso de adaptar uma peça para o cinema e como que a direção no teatro se difere da direção nos cinemas. Se há diferença?
Lázaro: Há muita diferença sim. Na peça eram somente dois atores: Flávio Bauraqui e o próprio Aldri, confinados no apartamento, num texto verborrágico, muitas palavras e apareciam alguns personagens por áudio. Quando a gente foi transformar em cinema, a grande dificuldade foi transformar aquele palavrório todo em imagem, ser sintético, sucinto. O filme ainda mantém algumas características do teatro que são os monólogos, cada um dos protagonistas tem um monólogo, Alfred no início, Taís no local de resistência e o Seu Jorge no final.
Mas essa transmutação em imagem foi muito difícil. Tanto é que durou muitos anos. O roteiro durou de 2012 a 2015/2016, uma vida. A gente passou por vários roteiristas e, no final das contas, o roteiro voltou para as nossas mãos: eu, o Aldri, o Elisio Lopes Jr e Lusa Silvestre, que veio convocado mais no final, e que falou “gente, já tá aí o filme, só vou dar mais os apontamentos”.
Mas foi um trabalho longo, artesanal e o mais difícil era justamente porque o filme não se acomodou em ter uma linguagem tradicional de cinema. Então isso também foi mais difícil. E esse roteiro, essa adaptação não se encerrou na escrita. Porque quando eu fui editar, ainda mexi muito, tanto é que esse filme tem 29 versões. Porque a gente reescreveu ele todo também na ilha de edição, que a gente vai aprendendo coisas e recebendo o que os atores ofereceram pra gente, que é algo que eu acho que é muito importante também. Não se acomodar no que tá no papel, os atores são muito inteligentes e oferecem coisas, e foi muito importante a gente tá atento pra absorver isso e colocar na história.
QG: E eu queria que você comentasse também um pouco sobre a escolha do elenco. Eu vi que você falou que a escolha do Alfred foi a projeção dele e como foi esse processo de escolha do restante do elenco?
Lázaro: Ó, tinha uma questão ativista minha, Lázaro, particular, assim. Eu queria que as pessoas fossem envolvidas com a causa. Brancos e negros, orientais que estão no filme, a ideia era essa, ser mais um agente de transformação, pra usar um termo que que tá em voga. Então, isso foi um critério. Passava por isso também. Claro que são pessoas muito talentosas, muito competentes, que cada uma por seu mérito tá ali no filme. E era muito importante pra mim também ter uma diversidade, esse filme tem muita diversidade sim, de perfis, de traços físicos, de faixa etária. A gente tem todas as faixas etárias no filme. E, assim, cada um tem uma história, inclusive pra isso eu escrevi um livro chamado “Diário do Diretor”, que será lançado na próxima semana, pela editora Cobogó, pra contar cada momentinho que eu fui vivendo na construção do filme.
QG: Eu vi que o Emicida (que fez sua estreia como ator em “Medida Provisória”) comentou que você tem um jeito de trazer um olhar que o mundo não percebe. E eu queria que tu comentasse um pouco sobre isso, porque o Quilombo Geek é justamente pra trazer esse olhar que ninguém vê…
Lázaro: Pois é, mas é um olhar que a gente vê, no nosso dia a dia e que às vezes fica escondido, silenciado. Isso vem do Bando de Teatro Olodum, lá na Bahia, meu grupo de teatro, que me ensinou a desacostumar as vistas. Acho que isso precisa ser projeto de vida, porque se a gente acostuma a vista, a gente vicia e a gente vira um preconceituoso. É assim que se quebra o preconceito, tá? Atento a olhar o mundo todos os dias, no que ele se transformou, escutar de verdade e perceber que nós somos plurais, temos muitas vozes.
Isso eu aprendo no teatro, com o Bando de Teatro Olodum, grupo que vem ali da Bahia, formado por atrizes e atores negros, eles me disseram isso em tudo o que eu fiz ali, na maneira que eles escolhiam o elenco, como a gente escolhia o que a gente ia falar no palco e isso não saiu de mim, isso permanece até hoje. E eu fico muito feliz porque eu acho que os projetos que eu participo acabam ganhando muito porque mesmo estando em formatos tradicionais, eles trazem uma inovação, porque o mundo ainda não viu nada do que a gente é capaz.
QG: Eu queria saber se o “Lázaro Jovem” imaginava que um dia o “futuro Lázaro”, o “Lázaro de hoje”, estaria dirigindo filmes com protagonismo negro? Tendo Medida Provisória agora e, futuramente, o lançamento da adaptação do conto “Outono” da Babi Dewet, que faz parte do livro “Um Ano Inesquecível”. Queria que comentasse um pouco sobre isso…
Lázaro: Eu não vou nem falar o “Lázaro Jovem”, eu vou falar o Lázaro de 35 anos de idade, que eu tô com 43 agora. O Lázaro, até os 35 anos de idade, nunca achou que ia tá ocupando esse lugar. Por não desejar, por não me perceber “necessário” nesse lugar, por não saber que eu podia sonhar com isso.
Às vezes a gente aprende a se dizer isso. O que é triste. A gente se dá “não” na vida ao invés de se dar “sim” o tempo todo, nós mesmos criamos essas barreiras. Inclusive eu tenho me trabalhado nisso, trabalhado em quem me acompanha, pra gente derrubar isso, inclusive trabalhado nos meus filhos. A gente se dizer “sim”, a gente se fazer esse carinho, se acreditar.
QG: Você comentou sobre sonhos no programa Roda Viva (exibido pela TV Cultura no dia 11 de abril de 2022) e aí a gente que é da periferia não tem essa perspectiva. E eu queria saber se tu tem alguma coisa pra dizer pra pessoas que, como a gente, não tem essa perspectiva do sonhar…
Lázaro: Se agrupem, se aquilombem, é a primeira coisa. Tem muita gente que pensa como você, que sente como você e ficar sozinho não vale a pena. Coletivo é transformador.
Mas tem uma outra coisa que é muito importante também, que tá pra além do sonho e que viabiliza sonhar: votem direito. Votem direito. Política pública é importante pra transformar as realidades periféricas que a gente tem, é com a política pública que a gente vai ter acesso a direitos e bens, é com a política pública que a gente vai ter uma casa com saneamento básico, é com a política pública que a gente vai ter acesso a cultura e a lazer, é com a política pública que a gente vai ter uma escola pública de qualidade. É muito importante lutar pela política pública, é muito importante votar direito, pra quem pensa em vocês e priorizam vocês também.
Serviço:
Medida Provisória
Em cartaz no Cineteatro São Luiz (até o dia 22 de abril) e nos shoppings Parangaba e Via Sul.
Ingressos disponíveis nas bilheterias física e virtual, no site Sympla e no site Ingresso.com
Classificação Indicativa: 14 anos
Elenco: Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Mariana Xavier, Flávio Bauraqui, Emicida.
amiga, estou emocionada com a sua entrevista. parabéns! você é uma jornalista incrível. obrigada por proporcionar esse conteúdo tão rico. ❤️
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Obrigada, Thays ❤
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