“Medida Provisória” é uma distopia com visão para um afrofuturo

As pessoas pretas são enviadas de volta ao continente africano em “Medida Provisória” (2022), filme dirigido por Lázaro Ramos baseado na peça teatral “Namíbia, não!” de Aldri Anunciação. Em algum lugar do futuro, que os roteiristas Elisio Lopes Jr, Lusa Silvestre e os já mencionados Lázaro e Aldri decidiram não definir, todos os cidadãos “melaninados” são convocados a retornarem para a África, como forma de compensar os 400 anos de escravização sofrido por nossos ancestrais. 

André (Seu Jorge), o jornalista e militante, Antônio (Alfred Enoch), o advogado, e Capitu (Taís Araújo), a médica, são os três personagens que guiam a trama principal. Juntos, eles formam um núcleo familiar que, como muitos, se recusa a deixar o país. A partir daqui, o filme de Ramos já mostra o primeiro diferencial: trazer pessoas pretas em posições que não são de subserviência. Além de fugir dos estereótipos raciais presentes na história do cinema. Ou seja, faz o básico que a maioria dos diretores branques ainda tem dificuldade para cumprir. 

Da direita para a esquerda: Antônio (Alfred Enoch), Capitu (Taís Araújo), André (Seu Jorge) e novamente Antônio | Qulombo Geek
Da direita para a esquerda: Antônio (Alfred Enoch), Capitu (Taís Araújo), André (Seu Jorge) e novamente Antônio. Foto: Reprodução/Elo Company

É importante pontuar que não é porque os protagonistas não são caricaturas do povo preto, que eles têm personalidades perfeitas, são sensatos em todas as decisões e são modelos de conduta. Na verdade, o que nos aproxima deles são as falhas apresentadas ao longo da narrativa. Capitu e Antônio, por exemplo, acreditam que é possível lutar contra o racismo de forma passiva, enquanto André prefere uma abordagem mais combativa. 

Por isso, a história dos três se torna tão interessante. Em algum momento de nossas vidas (aqui me direcionando especificamente ao nossos leitores que são negres), nos encontramos num lugar parecido ao de Antônio, Capitu ou André. O advogado optando por usar sua profissão e o poder que lhe é dado para lutar por seu povo, a médica engolindo sapos para mostrar serviço e se sentir pertencente ao local de trabalho, e o jornalista com síndrome de super-herói.  

Mudanças vão acontecendo na forma como eles vão lidando com aquela situação ao longo do enredo. A obra se vale da mistura de gêneros de drama, terror, romance e comédia para construir o roteiro com leveza, mas com cenas de impacto, trazendo o humor como elemento principal. Sem tirar o caráter de urgência que o longa-metragem traz, prendendo a atenção do espectador ao mesmo tempo em que propõe novas possibilidades de narrativas sobre o povo preto.

André e Antônio em "Medida Provisória" | Quilombo Geek
Foto: Reprodução/Elo Company

O talento do elenco ajuda a tornar a obra mais palpável. Afinal, quem melhor do que Adriana Esteves (inspetora Isabel ) e Renata Sorrah (dona Izildinha) para interpretar verdadeiras “Beckys” (mulheres brancas racistas de classe média acostumadas com seus privilégios e que se sentem superior aos outros.).

Seu Jorge nos prova mais uma vez que ele é um camaleão, podendo se transformar em quem quiser. Taís Araújo serve elegância, delicadeza e força com Capitu, mostrando o que uma boa direção e um roteiro bem escrito são capazes de fazer. Alfred Enoch nos encanta com seu sotaque melódico, entregando o mocinho que sempre quis ver nos cinemas: não-branco e que não é exatamente o herói da história, porque nem toda narrativa precisa de um salvador. Além do restante do elenco, que mesmo coadjuvante tem uma passagem marcante a cada sequência, evocando o caráter de coletividade da obra. 

Seu Jorge em "Medida Provisória" | Quilombo Geek
Seu Jorge interpreta o jornalista André. Foto: Reprodução/Elo Company

A fotografia também é uma das ferramentas protagonistas nessa criação de outras perspectivas. Sobretudo com o uso do plano detalhe, focando em partes do rosto dos personagens, além de usufruir de quadros mais fechados para ações, como o ato de misturar leite ao café em determinada cena. Instigando nosso olhar para esses enquadramentos e para o que podem significar dentro da produção. 

Além disso, é possível perceber as referências usadas por Lázaro nesse novo modo de narrar. A comédia presente em Ó Paí, Ó”(2007) de Monique Gardenberg, os monólogos emocionantes e a cinematografia que também estão nas obras de Spike Lee como “Destacamento Blood” (2020), o drama de Karim Ainouz, com quem Ramos trabalhou em “Madame Satã” (2002), assim como o terror que aparece rapidamente em “Medida Provisória” me lembrou muito o de “Corra” (2017), de Jordan Peele. 

A trilha sonora é bem escolhida, auxiliando na imersão do espectador. As músicas encaixam perfeitamente nas cenas, como também acontece em “Pantera Negra” (2018). Inclusive, para aproveitar a comparação, é possível comparar André e Antônio a N’Jadaka (vulgo Erik Killmonger – Michael B. Jordan) e T’Challa(Chadwick Boseman), respectivamente.

Taís Araújo como Capitu | Quilombo Geek
Foto: Reprodução/Elo Company

Todos esses componentes constroem um enredo dinâmico e fluído, que não se vale somente da violência para sensibilizar as pessoas. Não vemos uma gota de sangue sequer, mesmo nos raros momentos de agressão à população negra. Outro aspecto que contribui para a qualidade do longa. 

Então, o filme se torna um espelho da nossa sociedade, cumprindo seu papel narrativo de distopia, gerando identificação não apenas devido à pauta racial, mas também em vista do cenário político. Com falas recorrentes acerca do atual governo, não à toa, a obra sofreu boicote da Agência Nacional do Cinema (Ancine). 

Laázaro Ramos olhando a câmera, Emicida e Taís Araújo em cena de "Medida Provisória". | Quilombo Geek
Emicida fez sua estreia como ator em “Medida Provisória”. Foto: Reprodução/Elo Company

Um dos poucos defeitos da obra de Lázaro e Aldri é deixar de lado a questão indígena. A produção não nos diz o que aconteceu com eles naquele Brasil do futuro. Em vez disso, resolveu fazer uma piada um tanto problemática. Talvez eles não tenham se sentido seguros para abordar isso, preferindo deixar em aberto, como o próprio diretor afirmou na entrevista ao programa Roda Viva. Bom, esperamos que isso seja corrigido na sequência. Vale lembrar que essa é a primeira vez do ator global à frente de uma trama audiovisual, erros podem ser cometidos e a crítica não desqualifica a produção. Para a estreia, ele já fez mais e melhor do que muito cineasta branco por aí. 

“Medida Provisória” é uma distopia que desperta em nós um alerta sobre os caminhos que a sociedade brasileira pode estar tomando, não é exagero afirmar isso. Entretanto, é uma distopia que ao invés de terminar em tragédia e incerteza, propõe um futuro de esperança. Um afrofuturo. 

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