Dia da Dança: Wilemara Barros fala sobre sua carreira, negritude e cinema

A artista foi uma das primeiras bailarinas negras do Ceará. Atualmente, ministra aulas de balé clássico no Curso Técnico de Dança do Porto Iracema das Artes.

O Dia Mundial da Dança é comemorado nesta sexta-feira, 29. A data foi instituída pelo Comitê Internacional de Dança (CID) da Unesco, em homenagem a Jean-George Noverre, mestre da dança. No Brasil, ela celebra a Marika Gidali, bailarina que, com Décio Otero, fundou o Ballet Stagium em 1971 em São Paulo.

A dança também está presente na Cultura Pop, desde o início, no surgimento do cinema no século XX, e nas produções mais atuais. Então, o QG convidou Wilemara Barros, uma das primeiras bailarinas negras do Ceará, para falar sobre a dança e a relação com a sua negritude. Atualmente, a artista faz parte do corpo docente do Curso Técnico de Dança do Porto Iracema das Artes. Wilemara também é atriz, atuando no filme “Siri-Ará” (2008), na peça musical sobre Dalva Pinheiro e dublê em “Pacarrete” (2019).

Confira abaixo: 

QG: Quando você começou no balé?

Wilemara Barros: Bom, comecei no ano de 1974, aos 10 anos de idade, na Escola de Ballet Clássico e Dança Moderna do SESI na Barra do Ceará, em Fortaleza. Através de uma audição com mais algumas 500 crianças. Era uma escola que oferecia aula de dança para filhos de operários. Meus professores eram do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Dennis Gray e Jane Blauth, além de alguns outros professores do Theatro. Quando eu comecei a dançar, não foi por vontade própria, foi minha mãe que me levou pro Sesi da Barra me dizendo que era uma surpresa e era para fazer uma audição. Na verdade, ela queria ter sido bailarina, mas vem de uma época muito difícil em que as bailarinas eram mal vistas. Ela me contou que a primeira filha que tivesse seria uma bailarina. E assim aconteceu.

A dança clássica naquela época era de difícil acesso, uma arte destinada para a elite, não tenho memória de crianças negras que vinham da periferia na escola, sobretudo nas escolas em Fortaleza.

QG: Como eram as aulas ?

WB: O Dennis, como todos os professores daquela época, tinha uma metodologia bastante rude, durante as aulas. Quando errávamos algum passo ele costuma nos chamar por alguns nomes, tipo: burra, lavadeira e outros. Bom, quando virei adolescente meu corpo passou por transformações e Dennis passou a me chamar de “Mulata”, hoje título do meu trabalho solo, em que  eu falo sobre minha carreira. A mulata a que ele se referia eram as sambistas (mulheres negras) que faziam show com um empresário chama Oswaldo Sargentelli. Nas décadas de 1970 e 1980, não tínhamos registros de bailarinas negras, sobretudo, bailarina clássica. Talvez, por conta disso, não tive nenhuma referência quando pensei em seguir a profissão, comecei a perceber que havia uma certa dificuldade de me inserir nesse lugar.

Wilemara Barros e bailarino em trabalho da cia dita  | Quilombo Geek
Foto: Arquivo pessoal

Sofri “preconceito velado”, onde as pessoas não tinham coragem de me falar pessoalmente, mas de alguma forma eu tomava conhecimento. Eu usava “panquê”, (maquiagem de cor branca) em todo corpo para esconder a cor da minha pele, fazia aula coberta de sacos plásticos para diminuir a espessura das minhas coxas e ouvi comentários de que eu sempre dançava na primeira fila e isso não poderia acontecer pelo fato de ser negra.

Sempre fui muito disciplinada, e eu fazia muita aula para apurar minha técnica, porque sabia que só assim teria passaporte para entrar em qualquer sala e ser respeitada pelo meu trabalho, pela minha performance em sala. Hoje, já temos na dança, sobretudo na dança clássica, várias referências de bailarinas negras tanto no Brasil como fora. Porém, ainda percebo que não temos representatividade de bailarinas clássicas negras nas grandes companhias brasileiras.

Wilemara Barros como cisne branco | Quilombo Geek
Wilemara como cisne branco do balé “Lago dos Cisnes”. Foto: Reprodução

A dança clássica tem mais de 400 anos de existência e veio da Europa, contudo, acredito que ela se popularizou. Necessariamente não tenho que adequar o meu corpo a essa técnica com toda a sua tradição, mas sim, posso pegá-la e adequá-la ao meu corpo. E  a exemplo, temos Cuba, que criou uma metodologia específica para seus bailarinos negros e que está dando certo! Acredito numa dança para todos! Qualquer pessoa pode dançar. A minha dança é o meu lugar de voz.

QG: Você mencionou que o professor costumava te chamar de “Mulata”, uma ofensa racial. Mas, hoje essa palavra também dá nome a um de seus solos, pode falar mais sobre esse novo olhar?

WB: Bom, o solo é uma narrativa da minha história. Eu e Fauller (diretor do trabalho e coreógrafo) nesses últimos anos, a gente vem acompanhando todo o movimento negro no Brasil e no mundo e ficamos receosos em manter o título, pois o termo tem uma conotação racista, mas decidimos deixar porque o título faz referência a forma como meu professor de ballet me chamava quando criança, e é nesse momento da coreografia em que eu coloco em questão o racismo na dança, sobretudo no balé clássico.

Entre as décadas de 1980/1990 fui fazer um workshop em Joinville, quando dançava no grupo Pano de Boca, da Vera Passos. Um dia, eu e uma amiga fomos a uma aula de um de um professor super famoso. Na sala, reparei que todas as meninas eram brancas, bem vestidas, com aquela característica de bailarina clássica, inclusive a minha amiga era branca e só tinha uma mulher negra na sala, que era eu. Eu acho que causou um estranhamento pra ele, que falou assim, “quem aqui não é bailarina clássica?” Eu, na época, como eu dançava balé contemporâneo, levantei o dedo e a minha amiga também, nós dissemos que não éramos bailarinas clássicas, éramos bailarinas contemporâneas. E aí começou a aula, no decorrer ele começou a me tecer, elogios maravilhosos. No final, ele parou a música, olhou para todas nós e falou assim: “como é seu nome?” Aí eu falei: Wilemara, ele disse: “Wilemara, quem foi que disse que você não é uma bailarina clássica?” E aí eu fiquei sem resposta. Porque me pegou de surpresa, mas assim, porque me colocava nesse lugar de não ser bailarina clássica, eu acho que era exatamente para não ter que ouvir determinados comentários, né? De que eu não era, porque eu não poderia ser bailarina clássica. Era isso que meu professor (o Dennis Gray) dizia. Talvez quando ele me chamava de “Mulata”, eu entendia isso: Que eu não sou uma bailarina clássica porque eu não tinha esse biótipo europeu.

Há uns quatro anos atrás, eu participei de um projeto chamado palco giratório, onde as companhias de dança circulam por todo Brasil. Fui com a minha companhia (a Cia Dita), nós dançávamos nos teatros, nas cidades e de contrapartida nós dávamos aula. Fiquei responsável pelas formações em balé clássico. Só que quando elas chegavam pra fazer aula de aquelas entravam, elas procuravam a professora e elas ficavam um pouco impactadas quando elas viam uma professora de balé negra. Aí o Fauller, que é meu marido também e diretor da companhia, disse: “Vila, eles estão passados e olhando”. Porque vinham querer saber, cadê a bailarina? Cadê a professora de balé do pessoal que estava aqui dando aula ontem, de técnico? É uma professora negra. Então, isso também me faz pensar, sabe, na potência de uma professora de balé clássico negra.

Solo “Mulata”, coreografado por Fauller. Foto: Arquivo Pessoal

 Eu cresci  ouvindo que bailarina tinha que ser branca, magra, né? Loira, de olhos claros, bailarina não falava, bailarina só via, que bailarino não andava, que bailarino flutuava, bailarino não pensa.

QG: A Edan Sesi fechou após quatro anos de funcionamento, como você fez para continuar as aulas?

 WB: Então, quando a escola do Sesi fechou, os melhores bailarinos da escola, que tinham mais técnica, e os mais velhos, ou seja, os que tinham 16/17 anos, migraram para outros lugares. Por exemplo, o Flávio (Sampaio) que já tinha em média mais ou menos 19 anos, entre 18 a 19 anos, foi para o Teatro Municipal (do Rio de Janeiro – TMRJ). A Francisca Timbó foi pra escolinha do TMRJ também. Alguns foram pra Europa, para outras cidades brasileiras. Poucos foram para algumas escolas locais,  aqui na cidade, algumas pessoas foram pro Hugo Bianchi.

Foto: Arquivo Pessoal

E aí, eu, ainda era uma, uma adolescente e não tinha condição financeira de fazer aula de balé.  Afinal, sempre foi uma arte muito cara. Então, parei de dançar, por cerca de dois anos. Um dia, estava andando, indo pra escola no meu bairro, vi uma menininha mais ou menos da minha idade dando umas piruetas na calçada. E aí sempre que eu ia para a escola via essa cena. Um dia resolvi perguntar se ela fazia balé, aí ela disse que fazia aulas de dança no Sesi da Barra. Fui lá saber como que estava era e descobri que a responsável era a Anália Timbó, que também tinha sido aluna do Denis. Ela disse que se lembrava de mim, das épocas da Escola de Dança do Sesi, então passei a frequentar as aulas no Sesi. A instituição não se chamava escola de balé, porque não queriam associar com a escola do Denis que era um outro formato, então eles chamavam de Escola de Dança Neoclássica do SESI. Rapidamente ela me colocou pra dar aula, para ser assistente dela. Porque ela sabia que eu tinha experiência. 

QG: Como você, sendo na maioria das vezes a única negra numa sala de dança, lidava com a rivalidade feminina incentivada pelo balé? 

WB: Sabemos que existe uma rivalidade na dança clássica  escancarada. Talvez o fato de não estar nos palcos enquanto bailarina clássica me isenta desse lugar de competição, mas sei que em sala de aula existe e sempre existiu. É claro que percebia que às vezes eu causava um certo incômodo por ser negra e chamava a atenção do professor, mas sempre fui muito tranquila, não tinha muito tempo para me preocupar, tão pouco me alimentar disso. O curioso é que quando fiquei mais conhecida, o incômodo vinha junto com um certo respeito por ser a única bailarina negra na cidade, atuante na dança contemporânea e que tinha formação clássica.

Solo “Mulata”. Foto: Arquivo Pessoal

QG: Quais foram as dificuldades nessa jornada? E teve algum momento que te fez lembrar porque dançar valia a pena? 

WB: Um dia minha irmã Nara disse: “Wilemara, vamos montar um espaço pra gente dar aula?” Nessa época, meu pai começou a perceber que eu estava muito inserida com a dança, que não estava me dando retorno financeiro e ele começou a dizer para parar de dançar, porque não tinha como me sustentar, para terminar os estudos e fazer uma faculdade. Ele começou a me cercar com essa conversa e fui ficando preocupada. Eu ia fazer aula de balé escondida, não tinha grana para pagar ônibus, porque ele não me dava, então, ia a pé da minha casa para o Sesi. Eu moro no Carlito Pamplona e o Sesi ficava na Barra do Ceará, era uma boa distância. Eu também não falava para as minhas colegas de balé que não tinha grana para pagar ônibus, esperava todo mundo subir no ônibus porque tinha vergonha de dizer que não vinha de ônibus. Quando montei a academia com a minha irmã, fiz o primeiro espetáculo juntamente com uma amiga que também foi do Sesi, que foi fazer aula em outros lugares. Alugamos um teatro e montamos um espetáculo, o primeiro foi ótimo, deu certo. O segundo fizemos um ato inteiro juntas. Foi uma homenagem ao Ney Mato Grosso, com canções dele. Só que no dia da apresentação o meu pai faleceu. E ele, mesmo não querendo, começou a ajudar, ele confeccionou o cenário e ajudava a fazer os sapatos. Então, minha mãe chamou todos os meus irmãos, fez uma reunião na minha casa e falou assim: “Olha, é o seguinte, pai de vocês faleceu, mas o espetáculo está pronto, em homenagem a ele vai ter espetáculo, não iremos cancelar”. Meus alunos foram dançar, mas eu não fui. Porque eu tinha que está no velório, não dancei o primeiro dia, porém, ela tocou a música, deixou lá todo o cenário que eu usava, uma cadeira e um livro. E foi super triste, mas assim, né? Eu também concordava, achava que tinha que ser feito. Eram dois dias de espetáculo. No segundo dia minha mãe disse: “Você vai dançar”.

Foto:  Caio Ferreira

 Dançar é difícil, né? Porque é uma arte cara, então, realmente eu nunca tive dinheiro pra me bancar. Tenho uma origem bem humilde, uma família  de sete irmãos. Depois que meu pai faleceu aos 52 anos, deixando minha mãe, uma mulher prendada, uma senhora domestica que cuidava dos filhos, ficou complicado sustentar essa arte. Na época do balé do Sesi, nós não pagávamos nada. Ganhávamos tudo, o Sesi  dava ao filho de trabalhador, toda uma assistência. Era  a malha, sapatilha, fitinha, tarrafa, lanche, assistência médica, tudo, ganhávamos tudo

Quando eu me apresento nos cucas, com o “Mulata”, a gente tem uma conversa com a plateia e o que você escuta dessas crianças e adolescentes é muito revigorante. É isso que me oxigena, sabe? Me faz querer estar nesses lugares. Com a minha dança, né. “Porque você vê relatos de crianças negras que falam para mim: eu vejo a senhora dançando com essa idade, fazendo isso me faz acreditar que eu também posso”. Aí quando você vê um relato de uma criança falando isso, você enche os olhos d’água, né? E de de meninas falando: “ai, professora, que bom que eu vim ver a senhora, porque queria trazer a minha mãe, ela tem a sua idade, mas parece senhorinha velha, só quer ficar dentro de casa usando umas roupas de velha e aí eu vejo a senhora, com essa idade jovem, de collant, de meia, vou dizer pra minha mãe que ela tem que ver a senhora para se espelhar e querer ser jovem, vigorosa como a senhora”. Ouvir isso é muito gratificante e é nessa hora que eu falo assim, valeu a pena. E vale a pena ainda estar pensando na dança.

QG: Como surgiu esse apreço pela dança contemporânea?

WB: Eu sempre fui muito apaixonada pelo balé clássico. Quando eu comecei a fazer aula de dança, me apaixonei imediatamente pelo balé clássico. Sonhava em ser um cisne, uma sylphide, como toda criança. Mas quando o balé do Sesi parou, que eu parei de dançar e depois voltei para fazer aula com a Anália, conheci a dança contemporânea. Porque a Chica (Francisca Timbó – coreografa e bailarina cearense), a irmã da Anália, atuava em companhias contemporâneas pelo país, então ela trazia grupos para Fortaleza, trazia os amigos bailarinos e eles ministravam formações de dança contemporânea. E aí eu comecei a gostar da dança contemporânea, fui percebendo que me dava essa liberdade de tirar das pontas, de dançar descalço, com os cabelos soltos. Comecei a conhecer coreógrafos de dança contemporânea que vinham trabalhar comigo, eles pediam pra que eu lesse sobre o que eu estava fazendo, eles pediam para que eu contasse a minha história e que de alguma forma. A minha história iria estar inserida dentro do trabalho que eu estava dançando.

Solo “Mulata”. Foto: Arquivo Pessoal

Teve uma vez que trabalhei com o Cláudio Bernardo, coreógrafo que morava na Bélgica. Ele montou um trabalho chamado Iracema e pediu pra que todo mundo lesse o livro. Na minha época, a gente não tinha facilidade de internet, os livros eram muito caros. E na maioria das vezes, quando você pegava um livro, não tinha tradução para o português. Então, você não lia nada sobre personagen de balé clássico, era o professor quem contava, quando contava, senão você interpretar uma figura que você não sabia nem de onde saiu. Ou que muitas vezes não tinha relação com o teu dia a dia, com a tua rotina, você ia fazer uma princesa, que mora lá na Europa e você é da periferia, que não tem às vezes nem o que comer. Quando eu fui dançar no Pano de Boca, o coreógrafo pedia pra gente ler o livro, para gente assistir tudo que pudesse, sobre a história do Ceará, José de Alencar, Iracema e pedia para que nos movimentássemos na sala, ou seja, improvisássemos. E o balé foi construído em cima da dança de cada bailarina. Então, a dança te permite isso. Hoje o coreógrafo trabalha muito com o bailarino co-criador. Eu contribuo com o coreógrafo para o trabalho dele, a movimentação é minha, a direção é dele. Eu gosto demais disso. Foi o que começou a me despertar, chamar atenção para a dança contemporânea. Além de muitos trabalhos falarem sobre questões sociais.

QG: Pode se dizer que o balé é uma arte datada, como você lida com isso?

WB: É algo que já vinham conversando com meu marido, o Fauller. Ele sempre me perguntava: “Vila o tempo tá passando, você sabe que você vai envelhecer e vai chegar um momento em que você não poderá mais dançar trabalhos técnicos”. Porque o virtuosismo ele se borra. Ele vai embora com o tempo, né? Então, isso sempre foi muito claro pra mim. De que chegaria um momento em que não iria mais dar conta, dos giros, de saltar, enfim. E aí a dança contemporânea me permitiu estar em cena de uma outra forma. Porque me deu um amadurecimento para estar no palco sem me martirizar. Ainda posso fazer um pouquinho fazer essas coisas, mas sem saltar e girar. Quando eu falo isso, é em relação a quando tinha 35 anos. Saltava, girava, tinha balance, essas coisas.

O filme “Pacarrete” mostra que a idade não é obstáculo para uma artista sonhadora.

A minha dança hoje está em outro lugar, ela está num lugar de amadurecimento, experiência, ser generosa com o público. Sem mentiras, você não tem como camuflar, sabe? É você nua e crua ali, em cena. É todo material que você lapidou durante toda a sua vida. Outro dia estava assistindo uma entrevista do Mikhail Baryshnikov e ele diz que a dança clássica, quanto mais você envelhece dentro da dança clássica, você se camufla. Enquanto a dança contemporânea, quanto mais você envelhece, mais é visto, porque ali não tem mais o virtuoso, mas tem toda uma história de vida pra conta e isso é muito bacana.  

QG: O balé é uma arte que também exige um certo padrão corporal. Você pode falar sobre como encara isso?

WB: Quando fui crescendo passei a ouvir a frase: “ela é muito boa mas é gorda!” Para alguns coreógrafos isso era um incômodo e, que inevitavelmente passou a ser meu também. Então, sem que minha mãe soubesse comecei a tomar em jejum o vinagre e o sumo do limão (não consegui emagrecer, mas adquiri uma gastrite), e com isso vieram todas as alternativas de conseguir perder peso, inclusive afinar as coxas. Fazia aula com uma calça de “tactel”, bem comum na época para quem queria emagrecer e como se não bastasse por baixo da meia, usava envolto das coxas e abdômen sacos plásticos. Só hoje entendo que eu não era gorda, e sim musculosa, características de um físico de uma mulher negra. Por alguns anos vivi com esse dilema de ser “a bailarina das coxas grossas”. Nesse momento, ao responder a tua pergunta, me faz pensar que talvez a resistência que tive por alguns anos em usar tutu, meia cor-de-rosa e dançar balé de repertório fosse por conta dessa ditadura imposta por essa dança europeia. 

Mas com o passar dos anos, todos esses dilemas foram resolvidos. Entendi que meu físico é herança dos meus ancestrais, hoje visto um tutu e danço balé clássico sem traumas. Acho que tudo isso faz parte de um amadurecimento, de um autoconhecimento e  crescimento enquanto artista.

Espetáculo “Corponô”, da Cia Dita. Foto: Arquivo Pessoal

QG: Além de dançar, você atua. Como começou a se interessar por outras áreas dentro da arte?

WB: O cineasta Rosemberg Cariry assistiu o Devir, então, me convidou para participar de um filme dele, o “Siri-Ará”(2008). Inclusive, na produção tem as cenas desse espetáculo, mas eu não participo delas porque estou fazendo outros personagens. Eu faço os cinco personagens. As pessoas começaram a ver, aí uma pessoa da moda, do Dragão Fashion me chamou pra abrir o desfile dele, aí eu desfilei com um vestido lindo, numa sapatilha de pontas. Outro me chamou pra falar pra fazer um trabalho de teatro musical, que era homenagem a Dalva de Oliveira, e por aí foi. Já me chamaram para fazer umas fotos numa revista. Então, comecei a sair desse núcleo do palco da Caixa Cênica e fui para moda, fui pro teatro, fazer musical, fazer cinema, desfile, sabe? A minha carreira foi se construindo com esses leques que foram se abrindo. 

Eu acredito que o que contribuiu também para essa gama de coisa foi a minha curiosidade. Sou muito inquieta. Gosto de desafios também, sabe? Quando me proponho a fazer algo, quero fazer mesmo de verdade, assim. Se você me desafia a fazer algo, olha pra mim e diz assim: “Não, você não vai fazer”. Aí eu digo: , vou, vou fazer sim. Mas a muito custo, sofrendo muito. Por causa disso, sempre estive nos lugares pra fazer aula com todos os professores, não só aula de balé clássico, mas também de dança moderna, expressão corporal, karatê, capoeira, tai chi chuan, dança do ventre, sapateado e jazz. Não me considero uma atriz, porém, ganhei um prêmio de atriz coadjuvante em Brasília. Quando o diretor me chamou pra fazer o filme, ele disse que era exatamente isso que queria. Uma pessoa que não fosse uma atriz profissional. Porque no cinema eles gostam de pessoas que não tenham os trejeitos do teatro.

Foto: Fabiane de Paula

QG: Inclusive, como surgiu o convite para o filme “Pacarrete“(2019)?

WB: O diretor de “Pacarrete”, Allan Deberton, havia comentado com uma amiga, atriz cearense, que gostaria de fazer o filme mas que não sabia exatamente o que fazer com a atriz Marcélia Cartaxo (protagonista). Então, a amiga indicou para que ele fosse me assistir fazendo “A Morte do Cisne” na Bienal de Dança do Ceará. Após assistir ele disse: “já sei como vai ser o filme e quero essa bailarina de dublê”. Colheu todas as informações possíveis ao meu respeito e em seguida ligou para meu marido, Fauller. Bom, marcamos um café, conversamos sobre o roteiro, falamos pra ele que trabalhamos juntos e ele disse que gostaria que eu fosse a dublê de Marcélia, que nós dois fizéssemos a preparação de corpo da atriz e coreografia do filme. Tudo isso ele me contou. E também me falou que ao me ver no café, ficou impressionado com a minha semelhança com a Marcélia. Isso foi decisivo na escolha.

QG: Você pode comentar sobre o processo de preparação e composição coreográfica com a Marcélia, já que ela não tinha contato com a dança?

WB: Primeiro, ele marcou um encontro nosso com Marcélia, para que pudéssemos já ir estudando a atriz, e vice-versa. Após esse encontro, tivemos 15 dias de trabalho intenso, manhã e tarde de segunda a sexta. Tivemos uma pausa, pois Marcélia precisava voltar para João Pessoa, onde reside. Depois tivemos mais 15 dias de trabalho com a mesma carga horária, só que dessa vez em João Pessoa e já para finalizar toda a parte de dança do filme. Montei um programa de aula de balé, específico para ela, pensando em suas limitações por causa da idade, nenhum histórico com a dança e o pouco tempo que teríamos juntas. No programa constava aula de chão (Barra e solo) e organização postural. Aula básica de meia ponta, na barra e aula básica de ponta. Fauller, dava aula de preparação de elenco e improvisação. Trabalhei com Marcélia sempre com muito cuidado e muita responsabilidade, pois havia ali em minhas mãos um corpo que nunca tinha dançado antes. Marcélia por sua vez muito determinada, incansável e disponível. Ela observava a forma como eu andava, sentava, olhava, meu figurino, até os brincos pequenos que eu usava. E tudo isso contribuiu para a composição do seu personagem. Tive que ensiná-la a dividir a música em contagens para que ela pudesse entender a coreografia. A dança do Cisne foi ensinada por trechos, codificada e decorada pelas imagens. Já que para ela era muito difícil decorar tudo de uma vez.

Para mim, foi um trabalho difícil, desafiador e ao mesmo tempo muito rico e gratificante. Foi uma experiência incrível construir e dar movimento  para uma  história de uma bailarina tão incompreendida, como foi “Pacarrete”. Ser dublê de corpo da atriz Marcélia Cartaxo foi uma honra, uma grande atriz, mulher forte, que com sabedoria e generosidade soube receber e abraçar todas as informações que podíamos oferece-la. Nesse trabalho, eu e Fauller, meu companheiro, tivemos um lindo resultado com muita parceria, dedicação e companheirismo.

QG: Para finalizar, como você encara a representação das bailarinas nos filmes de dança de Hollywood?

WB: Não costumo ver filmes de dança, a não ser que seja de grande interesse consumi-lo. Acho interessante enquanto divulgação, fomentação da dança, mas nem sempre é assim, as vezes vem como um desserviço. A última produção que vi foi o “Cisne Negro”(2010), que mostra a realidade da vida das bailarinas nas grandes companhias com seus sacrifícios e abdicações, porém um tanto quanto fantasioso e de difícil entendimento para adolescentes, pois mostra um distúrbio psicológico na protagonista entre realidade e fantasia. Prefiro ver documentários, acho mais educativo. Há pouco tempo assisti o documentário sobre a vida de Nureyev, é fantástico! Mostra a trajetória de um grande astro da dança mundial. Acho que temos poucas produções em dança, na maioria das produções trazem bailarinas brancas, princesas e barbies estereotipadas.

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