
Toda vez que penso no que aconteceu, eu não consigo deixar de me culpar, sempre. Acredito
que de todo o horror pelo o qual passei, o maior de todos é aquele que ainda me persegue,
esse sentimento vazio que persiste mesmo quando a névoa já desapareceu.
A verdade é que eu me entreguei.
Eu estou tentando colocar isso em um papel, para tentar me agarrar a última esperança de que
não enlouqueci. Mas estou suando frio, minha mão treme e meu coração parece querer se
arrancar para fora do meu corpo.
Nada o impede, meu peito já está rasgado.
O quarto está gélido, é madrugada. O luar está quase completamente escondido pelas nuvens,
mas ele está descendo, indicando que a meia noite está cada vez mais longe e que o fim do
mundo está cada vez mais perto.
A escrivaninha em frente a janela, a floresta escura para além dela.
É para ela que olho.
O relógio confirma que tudo aconteceu horas atrás, mas parece que apenas momentos se
passaram e eu pioro a cada segundo que continuo vivendo.
2:50 da manhã.
Eram 22 da noite.
Eu estava chorando muito. Estou dizendo isso para explicar o fato de que minha visão estava
embaçada, meus olhos inchados e minha mente não estava funcionando direito. Agora ela
está pior, mas desde que aconteceu eu venho sentindo que ela nunca realmente havia
funcionado. Que eu nasci com algo faltando, foi isso que as vozes me falaram.
Ainda as escuto dentro dos arrepios que percorrem minha coluna.
Eu estava sozinho em casa, eu acho. Eu não deveria estar, já era hora da minha mãe ter
chegado da biblioteca, mas eu estava sozinho por alguma razão, apenas descobri isso depois
que a luz piscou em meu quarto e uma porta bateu lá fora, o som abafado pela porta fechada
do meu quarto.
Meu choro parou tão bruscamente que pareceu que outra pessoa esteve chorando naquele
quarto, que meus soluços vinham de algo além da minha visão.
Talvez tenham vindo, agora eu acredito nisso.
Eu não estava pensando direito, imaginei que fosse minha mãe chegando em casa.
Eu não tenho culpa, eu juro.
Não hesitei em me levantar e ir para a sala.
Nosso bairro era vazio, afastado da cidade. Eu tinha medo de sair de casa a noite, mas não
por medo do sobrenatural, apenas por estar sozinho. Esse medo me causava tanto pavor
quanto melancolia.
De certa forma, os dois sentimentos são assustadores o bastante para eu tentar evitá-los.
Mas nessa noite, foi não estar sozinho que me levou ao fim.
A porta para a rua estava aberta.
“Mãe?” Chamei. Minha voz saiu rouca depois de tanto tempo sem falar.
“Mãe!” Chamei mais uma vez, mais alto, mas ninguém respondeu.
A porta continuava aberta.
A luz do alpendre estava acesa. Não me lembrava de tê-la deixado acesa.
Eu fui fechar a porta, e agora enquanto conto esse pedaço da história eu vejo dois caminhos
se revelando, como dois galhos de uma árvore que se retorcem em direções diferentes. Vejo o
que naquele momento eu não tinha visto porque o sentimento foi forte demais para imaginar
que poderia ter acontecido de outra forma.
Eu fui fechar a porta, mas quando cheguei nela, eu não consegui, pois no instante em que
pisei para fora, eu senti algo profundo demais para ser explicado, mas eu sei que eu não
estava mais me sentindo sozinho.
Eu preciso que você me veja. Eu queria poder contar essa história sem dizer que eu sou o
culpado, eu preciso que você me entenda.
Naquela noite, eu chorava por estar sozinho acima de tudo. Chorava por muitas coisas mas
esse era o principal. Me sentia tão sozinho que chegava a ser irracional.
Ter sido irracional foi que fez tudo isso acontecer, e eu só queria poder voltar no tempo,
voltar no tempo até eu consertar minha solidão, então talvez eu não teria me perdido.
Quando eu disse que não estava mais me sentindo sozinho, era porque eu sentia uma
presença, apenas sentia, não via, mas é o que o desespero faz. Estava tão desesperado que
apenas sentir a presença havia me feito parar de sentir a tristeza.
Naquele momento, eu queria a presença, e ela me chamava.
Eu a segui.
Parecia um sonho febril ou um pesadelo. Apenas um poste aceso na rua, todas as luzes nas
casas desligadas, a maioria delas sem carros na garagem, pessoas viajando, pessoas se
mudando, cada vez mais sozinho, cada vez mais sendo puxado pela presença.
Pelo quintal.
Onde moramos é no limite da cidade com a floresta, e o nosso quintal é uma entrada para a
floresta.

Eu nunca entrei a fundo da floresta, e apenas por uma razão inexplicável. Era como uma
força que nos manipulava a
não ir
não entre na floresta
não entre na floresta
não entre na floresta
e nossos corpos respondiam inconscientemente esse chamado mudo. Tanto o meu quanto o da
minha família.
Com os anos eles foram indo embora até ficar eu e minha mãe, e até então nunca havíamos
entrado na floresta.
Mas nessa noite, o chamado era outro, o chamado era
entre na floresta
conheça o mundo
viva aqui dentro
e o chamado não era mais mudo, eu o sentia vibrando dentro de mim.
Eu não conseguia ver direito a floresta, era ainda mais escuro que a rua, iluminada apenas
pelo luar que sangrava. Mesmo sem vento, as folhas batiam e faziam barulho, elas cantavam
conheça a névoa
e então veio a bruma.
Ela desceu como um cobertor grosso, como uma manta, um sopro quente na dor fria.
Foram as vozes, as vozes, elas me deram tanta alegria.
Tinha impressão de que iria salvar minha vida pois eu ainda estava frio, estava gélido, achava
que meu coração estava esquentando mas eu estava morrendo lentamente, mas era tão, tão
bom, o arrepio do vazio.
Os bichos que vinham de outro mundo, as vozes me contaram, eram tão belos, e eu os vi.
Como era belo saber que estava prestes a morrer com as garras que rasgavam a manta da
bruma letal, e eu sorria enquanto o sangue escorria da minha ferida aberta.
Estava tudo na névoa, os dentes que rasgam carne e agora os gritos.
É tão triunfante desistir, não se sabe mais se os gritos são de glória ou dor.
Mas a glória é dolorosa, esse é o ponto final.
O odor letal de putrefação, dos ossos se levantando da terra, das árvores que gemiam com
seus troncos abertos derramando uma seiva escura e eu me afogava.
Os galhos se retorciam em meu pescoço, a noite girava.
Agora, contando, sinto um terror profundo com a cena, meu estômago se revira de nojo e
medo, a lembrança tão vívida quanto se eu estivesse lá agora, como se eu ainda estivesse
preso na floresta.
Mas agora, vejo o pior.
Pois eu estava me sentindo a pessoa mais feliz do mundo.
Eu não estava sozinho, estava com o pior pesadelo que existia no mundo.
Eu não estava sozinho, e era o bastante.
Mas nada que é escuro permanece, pois sempre haverá luz enquanto o sol puder se levantar.
E tudo começou a se esvair, lentamente.
Eu senti a morte escapar das minhas mãos, e o terror verdadeiro começou.
Os gritos começaram a se calar, as árvores retorcidas voltando ao seu lugar, os monstros
desapareceram e a névoa então foi levada junto com meu sonho.
Foi então que eu senti o pior terror que havia sentido, quando fui deixado completamente
sozinho.
Esse é o terror verdadeiro, ser abandonado.
Abandonado enquanto eu derramava meu sangue na floresta, um buraco infestado no meu
peito.
Foi avassalador, mesmo sabendo que eram monstros que estavam me acolhendo.
Mas pelo menos eles estavam comigo.
Achei que estava perdido na floresta, mas aqueles chamados antigos se transformaram em
SAIA DE DENTRO DA FLORESTA
SAIA DE DENTRO DA FLORESTA
SAIA DE DENTRO DA FLORESTA
e os gritos ecoavam em minhas pernas que corriam desesperadas.
Não sei por quanto tempo corri, mas eu estava indo para casa, só não para o meu lar.
Quando cheguei, a casa ainda estava vazia, a porta ainda estava aberta, nada havia mudado e
não havia mais presença.
Apenas eu, sangrando.
Entrei dentro de casa, fechei a porta e voltei para meu quarto.
A ferida ainda está aberta, eu acho que sujei toda a casa, mas é com o sangue vivo que
escrevo esta história.
Me sentei na escrivaninha, tentei chorar e não consegui.
Ainda estava tomado pelo medo de estar sozinho.
Agora estou com o medo verdadeiro, o medo da coisa que se esconde dentro da floresta.
Eu sei que nunca mais vou entrar lá, as vozes me impedem, mas agora sei que lá eu tenho
amigos.
Mesmo que eles sejam estranhos, mesmo que eles estejam em todos os cantos, suas vozes
ecoando das árvores lá fora, rastejando em minha mente como larvas.
Eu estou contando isso pois quero que você tenha cuidado, pois elas estão principalmente na
escuridão do lado de fora da sua janela quando você vai dormir. Nos momentos mais
vulneráveis elas podem te alcançar, é tão fácil, tão fácil.
Talvez eu durma e me esqueça de tudo isso, sinto que a lembrança já está sendo levada.
Ela ficará apenas aqui, neste papel.
Talvez ele seja levado também, por alguma razão.
Há forças aqui que estão fora do nosso controle.
Mas eu também perdi o controle, e o que me atormenta é pensar que eu posso perdê-lo de
novo, e tudo acontecer de novo.
Por favor, não perca o controle. Faça isso por mim, não seja levado como eu fui, não fique
sozinho, você será arruinado.
Estou com medo do amanhecer, com medo de perder meus amigos.
Não sei se estou mais assustado com a floresta ou com a euforia que tomou conta de mim,
mas sei que estou irremediavelmente quebrado.