“Ficção Americana” é uma sátira ácida e inteligente sobre como o negro é visto pelo entretenimento

O autor de ficção Monk (Jeffrey Wright) se vê desesperado diante do diagnóstico de Alzheimer da mãe, além da recente perda da irmã mais velha. Para conseguir custear o tratamento da matriarca, ele então decide fazer algo que abomina: escrever e publicar um romance cheio de estereótipos raciais. O que começa como uma piada toma proporções inimagináveis em “Ficção Americana” (2024). 

Não sabia que essa produção estava indicada ao Oscar de “Melhor Filme” até ver um post do Arthur Gadelha, um crítico de cinema aqui do Ceará, indignado porque o longa-metragem foi direto para o streaming. É de fato um lamento, já que a trama acaba sendo vítima da própria piada. 

Talvez, se tivesse se escorado em representações viciadas como uma história de superação ou sobre a jornada de algum escravizado para alcançar a sua emancipação depois de tanto sofrimento, tivesse algum apelo para rodar no circuito comercial. 

No entanto, “Ficção Americana” é uma sátira inteligente e profunda sobre como a Cultura Pop (cinema, livros, séries e outros produtos) gosta de abordar a vivência de pessoas negras. O filme não tem medo de falar isso explicitamente, com referências bem diretas, doloridas e até mesmo engraçadas, nas cenas. 

Cartaz "Ficção Americana" | Quilombo Geek
Foto: Prime Video/Divulgação

A começar com Sintara Golden (Issa Rae), uma autora que é uma mulher negra e acabara de publicar um best-seller. O problema é que o livro aparenta ter alguns estereótipos como o nome dos personagens e um modo de falar “favelado” (ou do gueto). Porém, é o que a branquitude gosta de consumir, porque é como nos vê. Não à toa, Sintara fez sucesso com isso e não vê problema algum em atender as demandas do mercado. 

Outro momento de crítica explícita e direta é o comercial na televisão que anuncia a programação especial para o “Mês da História Negra” (celebrado em fevereiro nos Estados Unidos). Imagens de pessoas pretas sendo perseguidas e executadas passam em sequência, enquanto palavras como superação e diversidade aparecem na tela. Chega a ser bizarro de tão real.

Monk (à esquerda) e Sintara Golden (à direita) | Quilombo Geek
Monk (à esquerda) e Sintara Golden (à direita). Foto: Prime Video/Reprodução

“Ficção Americana” não inventa a roda ao trazer à tona essa questão. Mas é ousado porque fala disso, enquanto diversas outras produções tocam muito superficialmente nessa ferida aberta há anos (e quando tocam). Um exemplo é “Black Af” (2020), que fala sobre como certos filmes com protagonismo negro nada agregam para a comunidade, porém, também salienta que precisamos dar audiência para esse tipo de produção, porque é o que temos. Então, acaba deixando a discussão vazia.  

A tensão entre Monk e Sintara me lembrou o livro, que já foi adaptado para série, “A outra garota negra”. Na trama, o suspense é usado para ilustrar como a branquitude nos manipula enquanto segue nos maltratando, fazendo isso da pior maneira possível: usando nossa cultura, conhecimento e nos fazendo crer que estamos promovendo algo que beneficia a comunidade negra. 

Lorraine (à esquerda), Lisa ao fundo e Monk à direita | Quilombo Geek
Lorraine (à esquerda), Lisa (Tracee Ellis Ross) ao fundo e Monk à direita. Foto: Prime Video/Reprodução

Para além da temática central, o roteiro traz um drama ao longo do enredo que confere uma sensibilidade interessante. Não se limitando somente à jornada do protagonista, mas desenvolvendo o arco dos personagens ao redor. Somos envolvidos pela família de Monk, não só por causa dos problemas, mas também por suas conquistas e aspirações. 

Destaco aqui a Lorraine (Myra Lucretia Taylor), que nos cativa com sua maneira doce de viver e observar o mundo. A atriz merecia uma indicação a Melhor Atriz Coadjuvante no Oscar de 2024, no entanto, acredito que como a personagem não sofre em momento nenhum, a Academia não considerou a performance digna de concorrer a estatueta. 

Assim como Myra, o resto do elenco está comprometido com a representação proposta em cena. Sterling K. Brown, conhecido por interpretar Randall em “This Is Us”, está irreconhecível como Clifford, irmão mais velho de Monk. O próprio protagonista também não perde a vibe melancólica, depressiva e arrogante do escritor. 

Cliff à esquerda, Monk no meio e Coraline (Erika Alexander) à direita | Quilombo Geek
Cliff à esquerda, Monk no meio e Coraline (Erika Alexander). Foto: Prime Video/Reprodução

Issa Rae está hilária como Sintara Golden e Leslie Uggams nos mostra como o Alzheimer pode deteriorar a mente de alguém. A atriz que dá vida à mãe de Monk me lembrou a minha falecida bisavó que foi acometida pela doença em diversos momentos. 

A trilha sonora é fundamental para dar mais ênfase ao tom satírico presente na trama, se adequando a cada cena. A fotografia entrega bons momentos, mas não é um diferencial para o filme. O roteiro é de fato a estrela da produção, com uma história bem contada e ácida. 

Enfim, assistam “Ficção Americana” e pensem sobre como consumimos o entretenimento feito para nós. O longa está disponível na Prime Vídeo.

Deixe um comentário