“A Criatura de Gyeongseong” usa o horror para denunciar as atrocidades cometidas durante a invasão japonesa na Coreia do Sul

Na primavera de 1945, um hospital em Gyeongseong, nome da capital coreana Seul durante a dinastia Joseon, realiza experimentos terríveis em cidadãos coreanos. Durante esse período, a Coreia era dominada pelo Japão desde 1910. 

Um monstro acaba sendo criado para servir aos objetivos da nação nipônica durante a 2ª Guerra Mundial. O mestre da Casa Dourada Jang Tae-Sang (Park Seo-Joon) é intimado por um oficial da polícia a localizar uma pessoa desaparecida. Ao longo de sua busca, ele cruza com a detetive  Yoon Chae-ok (Han So-hee) que está à procura da mãe. Assim começa “A Criatura de Gyeongseong”.

Quando vi o trailer dessa série sul-coreana, não entendi bem do que se tratava. Porque não nos é dito muito, o que é algo positivo porque só me atiçou mais para conferir a trama. Além disso, a produção conta com a presença de Park Seo-Joon (que interpretou o noivo da Capitã Marvel em “As Marvels”), que é um ator que gosto de acompanhar. 

Enfim, geralmente os k-dramas históricos costumam ser lentos ou muito pesarosos de assistir. Mas graças ao roteiro dinâmico de Kang Eun-kyung (“Dr. Romantic), o enredo da obra de horror se mantém ativo em todos os 10 episódios e consegue prender a atenção de espectadore do início ao fim.

Park Seo Joon e Han So Hee em "A Criatura de Gyeonseong" | Quilombo Geek
Foto: Netflix/Reprodução

Não houve um momento em que estivesse assistindo em que senti a narrativa estagnar ou enrolar algum tópico. O que seria completamente possível tanto por causa da pauta principal, afinal é da 2ª Guerra Mundial que estamos falando, quanto pelas pessoas desaparecidas, que poderiam ser usadas como argumento para ralentar a história. 

O tom de humor presente na trama é um dos pontos que auxilia a série a não estancar e consegue garantir momentos de leveza necessários, visto o contexto em que a produção está inserida. Como em outras séries que abordam a invasão japonesa, “A Criatura de Gyeongseong”  não exita em mostrar as crueldades cometidas pelos nipônicos através dos experimentos realizados, mas em situações do dia a dia. Por exemplo, [ALERTA DE SPOILER] há uma cena em que o personagem Jang Tae Sang está sendo linchado por um grupo de japoneses armados, um policial vê e mesmo com Tae Sang pedindo socorro e usando a sua influência, o oficial segue andando como se nada estivesse acontecendo. 

Jang Tae Sang na cadeira elétrica em "A Criatura de Gyeongseong" | Quilombo Geek
Foto: Netflix/Reprodução

A obra também demonstra as microviolências cometidas pelos nipônicos durante esse período histórico, como a proibição do idioma nativo, do uso da bandeira da Coreia, de manifestações culturais coreanas, dentre outras. É doloroso de ver, principalmente quando se é uma pessoa não-branca que também carrega histórico de opressões, sejam vividas por si mesma ou por seus semelhantes. 

As cenas de luta são outro ponto que se destacam na trama. As coreografias são intensas, esteticamente agradáveis de assistir, com uso sábio de câmera lenta para dar ênfase a partes importantes de cada conflito. Embora, claro, por ser uma obra de ficção, tenha fatos mentirosos no meio, como duas pessoas conseguirem lutar contra 10 ao mesmo tempo. No entanto, é algo que é remediado dentro da própria produção, onde em uma cena em que os protagonistas enfrentam cerca de 15 ninjas treinados, mas contam com o auxílio externo para saírem minimamente ilesos. 

Para além da intensidade, o tom crítico presente no roteiro se apresenta tanto através do próprio enredo, ao usar o monstro e os experimentos para mostrar como a sociedade japonesa desumanizava aqueles que considerava inferiores, quanto por meio dos diálogos presentes na trama. Diversas vezes, os personagens dizem que devem seguir lutando para que a história não esqueça o que foi feito com eles.  

Chae-Ok (Han So Hee) e Jang Tae Sang (park Seo Joon) em a "A criatura de Gyeongseong" | Quilombo Geek
Foto: Netflix/ Reprodução

Nesse ponto, realidade e ficção se misturam. Afinal, durante a invasão japonesa na Coreia e na China, foram realizados experimentos nos cidadãos desses países em um local na Manchúria. Os cientistas injetaram doenças, como febre tifóide, para testar como os corpos reagiriam, colocavam pessoas de cabeça para baixo para avaliar quanto tempo as pessoas aguentavam até morrer, enfim. A série cita esses exemplos, por meio de personagens e usa fotografias da época que explicitam essa violência cometida, como forma de enfatizar a relevância da pauta que estão trabalhando. 

A sacada da série em trazer o monstro como o ápice da crueldade colonial é inteligente. Lembra o que “Stranger Things” faz com Vecna, mas ao invés de trazer uma mensagem vazia e datada sobre anticomunismo, traz atenção a um trauma que ainda reverbera na sociedade coreana. Esse não é o primeiro drama e nem será o último a abordar o então período histórico doloroso. “Mr. Sunshine” e “Tomorrow” são outras duas produções que tratam essa ferida ainda aberta. 

Oficial japonês responsável por chefiar os experimentos
Foto: Netflix/ Repropdução

O recurso é comum em narrativas de terror e horror, que é o gênero principal do k-drama. Usar monstros, fantasmas, zumbis, para abordar o olhar e os traumas que oprimem minorias é uma ferramenta usada por filmes como “Invasão Zumbi” (Yeon Sang – Ho, 2016), “Nós” (Jordan Peele, 2021) e “A lenda de Candyman” (Nia da Costa, 2021), para citar alguns.

Claro, graças a uma fotografia esteticamente agradável, CGI bem feito, a trama nos assusta e rende cenas bem nojentas, [ALERTA DE SPOILER] quando o monstro vai sugar os cérebros de suas vítimas, por exemplo. A maquiagem é um grande destaque, o trabalho feito tem qualidade tamanha que não só confere verossimilhança aos ferimentos como também contribui para o gore presente em alguns momentos. 

A luz é mais uma ferramenta usada para contar a história. As cenas da Casa Dourada são sempre claras e coloridas, para mostrar  que Tae Sang usa o trabalho não só para atingir o status, mas para fingir que todo o contexto ao redor não o afeta. Já no hospital, tudo é muito escuro, para ilustrar o quão pesado e cruel aquele ambiente é. 

Chae-Ok (Han So He) e Jang Tae Sang (Park Seo Joon) em "A Criatura de Gyeonseong" | Quilombo Geek
Foto: Netflix/Reprodução

Inclusive, a falta de luz nas cenas atrapalha um pouco a visibilidade, porém é possível resolver aumentando o brilho do dispositivo que você está usando para assistir. 

Do mesmo modo que o roteiro foi fundamental para manter a série dinâmica, a direção faz um match perfeito para isso. O olhar do diretor e a maneira que ele orienta o elenco para contar a narrativa são realmente brilhantes. O talento de Park Seo-Joon, Han So-Hee e o resto do grupo composto por Claudia Kim como a terrível Lady Maeda, Jo Han-Chu lcomo o pai de Chae Ok ajudam bastante. 

O romance entre Tae Sang (Park Seo-Joon) e Chae Ok (Han So-Hee) é um dos aspectos que colabora para que a trama tenha a característica de um k-drama clássico. O modo como a relação deles se desenvolve de forma lenta, os pequenos gestos como pegar as mãos, a troca de olhares, que significam muito para ambos, e o tão aguardado beijo. Tudo isso sem deixar de fazer sentido com o enredo principal, mas sendo um complemento necessário para quebrar com a atmosfera tão tensa e obscura que por vezes se instalava na narrativa. 

Chae-Ok (han So He) e Jang Tae Sang (Park Seo Joon) | Quilombo Geek)
Foto: Netflix/Reprodução

Os conflitos proporcionados por Lady Maeda (Claudia Kim) também foram importantes para manter as características clássicas do gênero. Como uma verdadeira vilã de novela, ela proporciona ao público as formas mais distintas de ódio. 

No fim, a série é bem amarrada, deixando perguntas a serem respondidas numa sequência, que já foi confirmada pela Netflix. 

Agora, se era realmente preciso ter essas pontas soltas para ter uma segunda temporada, é algo se questionar. Acredito que mais dois episódios ou três responderiam as indagações que ficam no ar. Porém, vamos ver o que a próxima temporada nos reserva. 

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