“Tartarugas Ninja: Caos Mutante” é uma aventura sobre aceitação e negritude

Michelangelo (Enzo Dannemann), Raphael (Victor Hugo Fernandes), Leonardo (Rodrigo Ribeiro) e Donatello (Arthur Carneiro) são adolescentes comuns cujo principal sonho é serem aceitos pela sociedade para que possam fazer coisas “normais”, como ir à escola. 

No entanto, existe um pequeno obstáculo que os impede de serem incluídos: os quatro são tartarugas mutantes que foram criadas por um rato, também geneticamente modificado, o mestre Splinter (Tatá Guarnieri). Os  irmãos se veem perto de alcançar  o que mais desejam depois de toparem com a adolescente humana April (Any Gabrielly); e então, recebem a missão de combater o vilão Super Mosca (Jorge Lucas), em “Tartarugas Ninja: Caos Mutante” (2023). 

Bom, como uma típica criança crescida no início dos anos 2000 tenho uma memória de afeto muito forte com as Tartarugas Ninjas. Conheci diferentes versões entre filmes e desenhos animados que embalaram minhas manhãs, então obviamente era uma produção que estava ansiosa para conferir, já sabendo que entregariam algo incrível. 

April, Rapha. Leo, Donnie e Mike | Quilombo Geek
Imagem: Paramount Pictures/ Reprodução

Felizmente, minha intuição acertou, só não estava esperando uma obra tão sensível e inteligente, que tocaria a minha alma e tornaria a tarefa de escrever essa resenha um verdadeiro desafio. Pois, me vi pensando se conseguiria colocar em palavras tudo o que esse filme me despertou devido a forma sobre como falou comigo a cada cena. 

Apesar de ser uma animação sobre animais mutantes e humanoides, “Tartarugas Ninja: Caos Mutante” é sobre como o racismo opera para excluir pessoas não-brancas da sociedade limitando até mesmo seu acesso à educação de qualidade e saúde básica. Tudo no longa-metragem aponta para isso, desde as referências humanas que os quatro irmãos admiram como Beyoncé e Drake, a forma como falam, como gostariam de se vestir e como no fim só querem ser tratados como seres humanos. 

Talvez, para você pessoa branca que está lendo esse texto, nada disso faz sentido. Porém, cada diálogo de Rapha, Leo, Mike e Donnie, é relacionado com a  vivência preta. E isso fica óbvio quando analisamos que o principal sonho deles é poder frequentar a escola. Pode parecer uma realidade distante, mas houve uma época nos Estados Unidos, antes dos Direitos Civis em 1960, em que os colégios eram segregados conforme a cor de pele e as e as escolas para as pessoas negras tinham uma estrutura precária tanto nas salas de aula quanto em outras questões, como poucos livros em sua bibliotecas. 

Tartarugas Ninja em cima do telhado | Quilombo Geek
Imagem: Paramount Pictures/ Reprodução

Além disso, todo o sistema educacional, seja estadunidense ou brasileiro, é moldado de forma a incentivar a evasão escolar de pessoas negras. Falando por experiência própria de alguém que estudou a vida inteira em instituições privadas antes da graduação, somos excessivamente cobrados e vigiados por coordenadores e professores.  O roteiro da animação consegue transpor todas essas questões com qualidade na narrativa, sem perder a leveza e fazendo com que ela nos sensibilize em relação a isso. 

O fato de tanto os quatro irmãos quanto o mestre Splinter terem sido submetidos a experimentos também é outro aspecto que os conecta com pessoas não-brancas. Não faz muito tempo que pessoas negras foram submetidas a contaminação de sífilis sem autorização de 1932 a 1972, em Tuskegee no Alabama (Estados Unidos). Existem registros de chineses que foram encarcerados e usados como cobaias em experimentos desumanos pelo exército japonês durante a 2ª Guerra Mundial. 

Leo e Rapha surfando em varais de luz | Quilombo Geek
Imagem: Paramount Pictures/ Reprodução

Outro recurso que colabora para o tom emotivo da trama é a própria técnica de animação. Infelizmente não sei o nome do método usado, mas é semelhante ao utilizado em “Gatos de Botas 2” (2022) e na franquia “Homem-Aranha no Aranhaverso” (2018 e 2023). Assim, dando às cenas o aspecto de histórias em quadrinhos e contribuindo para a beleza estética da animação. 

A trilha sonora é uma aliada fundamental para dar a potência necessária ao enredo da produção, como também acontece em “Homem-Aranha no Aranhaverso” (2018). As músicas foram escolhidas de forma acertada para ajudar a construir a atmosfera pedida por cada acontecimento. 

A dublagem é outro ponto positivo da animação. Com um elenco maravilhoso de dubladores cujas vozes combinam com cada personagem e são memoráveis. Até mesmo Léo Santana, que até onde sei não tinha experiência com dublagem, arrasou na voz de Genghis Rã, um dos mutantes e anti-heróis do longa. Any Gabrielly também entregou boa performance como April, além de ser bacana ver uma personagem como a dela no mainstream, que além de trazer mais representatividade, gera empatia, pois nós mulheres negras introvertidas, porém com vontade de mudar o mundo, nos identificamos com a diva. 

April e Tartarugas Ninja | Quilombo Geek
Imagem: Paramount Pictures/ Reprodução

Acredito que uma das poucas coisas que empobrecem, talvez essa palavra seja muito forte, diminuem um pouco da qualidade da animação é aquele velho clichê de transpor o real problema para um vilão que na verdade é mais vítima do que um mal a ser combatido. Algo que os filmes do Pantera Negra (tanto o primeiro quanto o segundo) do Universo Cinematográfico da Marvel  fazem com o Killmonger (Michael B. Jordan) e Namor (Tenoch Huerta). O que acaba desviando a atenção do real problema comum a esses três filmes: o capitalismo desenfreado e consequentemente, o racismo nas suas mais diversas práticas. 

Entendo que toda típica jornada do herói precisa do vilão escrachado, contudo,  sonho com o dia em que esse padrão será verdadeiramente quebrado. 

Mas, o filme também nos sensibiliza por meio da relação dos meninos com o mestre Splinter. Nessa obra, conhecemos uma faceta menos carrancuda do personagem, que não tem medo de mostrar suas vulnerabilidades e faz de tudo para proteger seus filhos. Uma verdadeira figura paterna (Pedro Pascal que se cuide). 

Os quatro irmãos juntos, com Leo mais a frente. | Quilombo Geek
Imagem: Paramount Pictures/Reprodução

Compreendemos, além disso, porque eles conseguem se aproximar de April tão facilmente, diferente do que acontece com outros humanos. Ela é uma adolescente negra, assim como eles, acostumada a ser tratada do pior modo possível pela sociedade e por isso os quatro irmãos acabam encontrando nela muitas coisas em comum. Da mesma forma como ocorreu com Splinter, que não hesitou em acolhê-los quando os conheceu no esgoto.

Agora, deixando de lado todas essas questões sociais que a obra toca, as cenas de luta são outro ponto de qualidade do filme. Fiquei hipnotizada com as coreografias realizadas pelas quatro tartarugas animadas enquanto combatiam o crime.  


Enfim, mesmo sendo uma trama profunda e complexa, “Tartarugas Ninjas: Caos Mutante” é o filme ideal para ver com a família. Cheio de referências, com um timing perfeito para piadas, arrancando muitas risadas, além de tocar lá dentro do nosso coração. Principalmente se for uma pessoa não-branca.

2 comentários sobre ““Tartarugas Ninja: Caos Mutante” é uma aventura sobre aceitação e negritude

  1. Eita que essa tua resenha me deixou com muita vontade de assistir! Inclusive, a vontade é de sair do cinema e ler novamente e atrelar as cenas eu vc descreveu..

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